Tradições Vidreiras

Desde a sua descoberta, em torno de 5000 anos atrás, a produção do vidro sempre esteve envolto em uma áurea de mistério, que em maior ou menor proporção se estende até os nossos dias.

Isto não é difícil de entender para aqueles que estão envolvidos no seu processo produtivo. A produção do vidro, embora conhecida há tanto tempo, e originando um material tão popular, presente desde os mais ricos palácios até as mais humildes residências, estudado por cientistas pelos quatro cantos do mundo, ainda apresenta mistérios “insolúveis”.

Quantas vezes os vidreiros já não falaram: “nada mudou e a qualidade caiu” ou “nós fizemos tudo do mesmo jeito e o resultado foi diferente”

Isto acontece porque existem tantos parâmetros envolvidos numa aparente simples fusão de uma composição que dificilmente conseguimos dominar e compreender todos os fenômenos que estão em jogo.

Quando dizemos: “nada mudou” na verdade poderíamos dizer que nada é igual; a areia que estamos usando agora não é a mesma que usamos ontem, nem o gás que estamos queimando. Nem o forno, pois hoje ele já está um dia mais velho que ontem, sem contar com a umidade do ar, temperatura ambiente, e tudo o mais que evolui constantemente.

Antigamente tudo isto acontecia também, e como havia poucos meios científicos de compreensão dos fenômenos, e relacionamento destes com os resultados, tudo era empírico na base da tentativa e erro, e muitas superstições surgiram, tentando-se reproduzir condições que anteriormente deram bons resultados, ainda que sem nenhuma lógica e que permanecem até os nossos dias, mesmo nas fábricas mais sofisticadas.

Uma delas é a da continuidade da chama. Nunca se acende um forno com uma chama “nova”. A chama que ascende um forno é sempre trazida de outro, como se os vidreiros temessem usar um fogo novo, “sem experiência” que não saberá bem fundir o seu vidro.

Assim foi quando se acendeu o primeiro forno de vidro float (plano liso) do Brasil. A fábrica estava localizada em Jacareí. O forno iniciado no ano de 1983 foi aceso com uma chama trazida de São Paulo do forno que era, até então, o maior de vidro plano, por intermédio de um lampião.

Quando este forno parou para reforma em 1992, como era o único da fábrica, guardou-se a sua chama, cuidadosamente, em dois lampiões por todo o período da parada, de três meses, para reacendê-lo no novo arranque. Atualmente essa mesma fábrica dispõe de diversos fornos e cada um cede a chama para outro sendo dispensado o lampião.

A Wheaton Brasil Vidros, tradicional vidraria localizada em São Bernardo SP tem no centro de sua fábrica, uma pira permanentemente acesa que cede a chama para uma tocha que passa de mão em mão por uma fileira de funcionários, até chegar ao forno a ser ligado, após reforma.

Na CIV, antiga empresa do nordeste que hoje pertence à Owens Illinois, alem de empregarem uma chama de um forno em funcionamento para acender outro em início de campanha, faziam esta transferência utilizando uma tocha especialmente confeccionada para a ocasião e que ficava guardada após o uso como um troféu.

Da mesma forma o acendimento dos fornos não é feito por qualquer pessoa, mas sim pela madrinha do forno, normalmente uma jovem menina, como que para transmitir toda a vitalidade, pureza, esperança e perspectiva de uma longa vida pela frente, característica das crianças.

Talvez hoje em dia estas superstições não tenham mais o peso que já tiveram no passado, mas mostram o afeto das pessoas pelo seu trabalho, e um lado humano que persiste, felizmente, ao lado de toda a tecnologia.

Mauro Akerman
Abril 2017