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A longa história indígena na costa norte do Amapá

SALDANHA, João Darcy de Moura e CABRAL, Mariana Petry. A longa história indígena na costa norte do
Amapá. Anuário Antropológico [Online], II | 2014, posto online no dia 01 de ago. de 2017, consultado no
dia 23 de set. de 2019. URL : http://journals.openedition.org/aa/1261 ; DOI : 10.4000/aa.1261.
Disponível em: < https://journals.openedition.org/aa/1261>. Acesso em: 17 de set. de 2020.

Resumo:
A arqueologia na costa oriental da Guayanas (Estado brasileiro do Amapá) tem uma longa história, como os estudos de pioneiros como Emilio Goeldi, Henri Coudreau, Meggers e Evans, entre outros, nos lembram. Este lugar tem também um valor crítico para o atual debate sobre as evidências da complexidade sócio-político na pré-história da Amazônia, dada a ocorrência de locais impressionantes, como as estruturas megalíticas, e elaborada cerâmica, como as cerâmicas policrômicas Aristé. Desde a criação de uma equipe de arqueólogos no estado Amapá esta imagem ter sido alterada, com o aumento da base de dados arqueológicos disponíveis na área. Até agora, a cronologia foi estendida para o Holoceno médio, com sítios arqueológicos relacionados com grupos de caçadores-coletores; início de produção de cerâmicas locais, datando de, pelo menos, 3000 BP foram encontrados; e a proliferação de culturas cerâmicas arqueológicas foram documentados, com a co-existência de, pelo menos, 5 culturas diferentes na área desde o segundo milênio depois de Cristo. Além disso, a área apresenta estudos de casos instigantes em etno-arqueologia. A costa oriental de Guayana é um dos poucos lugares na Amazônia que mostra evidências de continuidade entre as sociedades ameríndias contemporâneos, como os Palikur e Kalina, e as ocupações pré-coloniais, proporcionando uma boa oportunidade para compreender a mudança que a colonização europeia impôs em padrões ameríndios pré-coloniais de organização sócio-política. Diante de todas as informações que já tenha sido recolhida, é óbvio que o Amapá é uma área-chave na região amazônica. Suas características geográficas singulares, um enclave entre a Amazônia, Guayana e áreas do Caribe, parece estar refletida na alta diversidade cultural na ocupação pré-histórica, onde diferentes tradições culturais convergiram e interagiram em uma região específica. Como tal, sugerimos que, depois de uma ocupação humana gradual desde pelo menos 8000 BP, ele se tornará, por volta de 1000 BP, uma arena altamente contestada, onde as diferenças regionais em estilos de cerâmica e centros cerimoniais\funerários foram usados e exacerbados para marcar fronteiras políticas e\ou sociais fronteiras. Este artigo tem como objetivo principal apresentar os atuais dados arqueológicos e o esboço de um projeto de pesquisa com foco na paisagem e uma história de longa duração dos contextos sócio-políticos ameríndios na costa oriental de Guayana, através do estabelecimento de um quadro cronológico e cultural da ocupação humana na região, desde os primeiros habitantes até o impacto da invasão europeia em grupos ameríndios.

Introdução
A arqueologia amazônica passou por uma série de mudanças no entendimento sobre a natureza da ocupação pré-colonial dessa região ao longo dos anos. A partir da visão do determinismo ecológico de Julian Steward (1948), a organização sociopolítica dos ameríndios amazônicos era necessariamente baseada em aldeias pequenas e autônomas com tecnologias simples e estruturas sociopolíticas igualitárias. Esse foi o tipo cultural de “floresta tropical” articulado por Steward no Handbook of South American Indians há mais de 60 anos, mas ainda aceito como modelo para as formações sociopolíticas nativas da Amazônia por alguns arqueólogos (Meggers & Evans, 1957; Meggers, 1996).

A partir da década de 1990, diversos pesquisadores, em contraposição à visão de Steward, argumentaram que as sociedades ameríndias amazônicas experienciaram formas mais complexas de organização sociopolítica (Roosevelt, 1991; Neves, 1998; Heckenberger, 2004; Schaan, 2004, entre outros). Mais recentemente, pesquisas têm relativizado essa bipolarização entre modelos de organização simples e complexos, enfatizando uma pluralidade de histórias indígenas regionais (Neves, 2008; Lima, 2010). Como consequência dessa relativização, Neves (2008) tem destacado a necessidade de novas pesquisas arqueológicas, com a reconstrução de histórias locais, para um melhor entendimento das particularidades do desenvolvimento histórico amazônico.

As costas norte do Amapá e leste da Guiana Francesa foram locais de desenvolvimento de uma cultura pré-histórica caracterizada por um tipo específico de cerâmica, denominada pelos arqueólogos de Aristé e associada a diversos contextos, tanto mundanos como sagrados. Alguns desses contextos são monumentais e impressionantes, como as estruturas megalíticas e as cavernas funerárias do Amapá; outros são mais humildes, apresentando apenas pequenas fossas preenchidas com urnas ou cacos. Entretanto, ambos apresentam claramente uma vontade de intervir na paisagem, ativando o espaço geográfico dessas culturas por meio de deposições específicas.

Aqui apresentaremos uma síntese das práticas relacionadas a esses objetos em seus contextos na costa norte do Amapá, explorando as formas, os conteúdos e as associações das deposições encontradas, e encarando-os como resíduos materiais de uma sequência de ação, cuja finalidade é estabelecer ligações materiais com lugares específicos. Dessa maneira, tais resíduos podem ser vistos como “deposições estruturadas” (Richards & Thomas, 1984), comunicando significados por meio de sua forma, seu conteúdo e suas qualidades simbólicas. Buscamos assim alinhavar relações entre elementos presentes na cultura material da região entre os séculos I e XVII d.C., monitorando continuidades e mudanças nas relações entre objetos, lugares e pessoas, com o objetivo de promover diálogos entre arqueologia e antropologia amazônicas.

Arqueologia: uma etnografia dos objetos na longa duração
Tilley (1996) argumenta que a grande força da arqueologia contemporânea é a preocupação diferenciada com a relação entre pessoas e cultura material, ou seja, “a maneira na qual formas materiais constituem um meio vital através do qual as pessoas constroem, manipulam e transformam seus mundos na longa duração” (Tilley,1996:3). Assim concebida, a arqueologia deveria envolver uma etnografia temporal dos artefatos e da maneira como eles se relacionam com estruturas e eventos, procurando ler as evidências em termos de interações entre componentes normativos e expedientes na produção e no descarte desses artefatos.

Segundo Hodder (1990:14), os processos simbólicos envolvem a generalização para além do particular, envolvendo a construção e manutenção de categorias abstratas. Entretanto, essas categorias têm que ser coerentes com eventos concretos. Assim, há sempre o risco de que esses eventos concretos gerem contingências que não se acomodam nas estruturas sociais e simbólicas, suscitando a mudança. Nesse processo, a cultura material é ativa na construção dos sistemas de significação: “o humilde artefato não é um mero adjunto para o que realmente interessa — pessoas e relações sociais — mas é fundamentalmente envolvido na construção destas relações. A cultura material é tão importante, e tão fundamental, para a constituição do mundo social quanto a linguagem” (Tilley, 1996:3).

Entendendo arqueologia dessa forma, ficamos em uma posição privilegiada para o estudo de grupos humanos. A evidência arqueológica não só deixa de ser pobre em informações, mas também nos dá uma habilidade única de monitorar continuidades e mudanças estruturais e sua relação com a experiência em uma longa duração.

A longa história indígena na costa do Amapá: a chamada Fase Aristé
Embora a cerâmica denominada Aristé seja conhecida desde as explorações de Emílio Goeldi na costa norte do Amapá, no final do século XIX, foi somente após a publicação de Meggers e Evans (1957) e da tese de Stephen Rostain (1994) que se alcançou uma melhor compreensão sobre essa cultura arqueológica. A ocupação Aristé se estende ao longo da costa atlântica do Amapá, desde a foz do Rio Amazonas até o Rio Approuague, já na Guiana Francesa. Datada do século I até o período colonial, essa fase possui uma grande duração, chegando a mais de 1000 anos.

Tanto Meggers e Evans (1957) quanto Rostain (1994) propuseram uma divisão cronológica dessa fase, baseada somente nos atributos cerâmicos, como técnicas decorativas e temperos. No entanto, essa divisão vai além de uma mera mudança no artesanato da cerâmica: é um indicador de um importante processo cultural ocorrido em torno do século X d.C. Tal mudança, por tradicionalmente ser vista somente a partir dos atributos cerâmicos, ainda não é bem compreendida, mas acreditamos que uma abordagem relacional entre artefatos, lugares e pessoas pode trazer novas e significativas contribuições.

A sequência de ocupação Aristé começa com o estilo Ouanary Encoché, caracterizado pela presença de apliques zoomorfos, modificações incisas e ponteadas, principalmente localizadas nas bordas das vasilhas, além de tempero de quartzo na cerâmica. Datado do início da era cristã, esse estilo irá durar até o século X.

 

Figura 1 – Cerâmicas típicas do estilo OuanaryEncoché

Os padrões de assentamento gerais da Ouanary Encoché não eram bem entendidos, dado que a maior parte dos sítios estudados continham mistura de ocupações tardias, perturbando e misturando os contextos. Além disso, o caráter restrito da maioria das escavações feitas anteriormente (áreas de cerca de 1×1 metro, ou ainda meras coletas de superfície) restringia o entendimento desses sítios. Entretanto, recentes pesquisas no Amapá e oeste da Guiana Francesa, envolvendo escavações mecânicas em grande superfície em sítios claramente Ouanary Encoché, estão demonstrando um padrão recorrente para esse período: grandes aldeias, algumas com mais de 20.000 metros quadrados, com diversas casas construídas, como atestado pela profusão das marcas de estearias encontradas nas escavações.

Muitos desses sítios possuem evidências de um esforço coletivo de seus habitantes na forma da construção de grandes fossos delimitando o espaço ocupado. As áreas delimitadas por esses fossos variam entre 0,5 e 3,5 hectares, com alguns fossos podendo alcançar 3 metros de profundidade. Os fossos são algumas vezes interrompidos por elevações de terra interpretadas como entradas para o interior desses recintos. Foram ainda documentados negativos de postes, sugerindo a existência de paliçadas. Todas essas evidências parecem apontar para um caráter defensivo dessas estruturas (Mestre, 1997).

Sítios cerimoniais/funerários bem documentados não foram ainda descritos para esse período. Apesar de haver indicações de urnas funerárias Ouanary Encoché em grutas, os dados ainda são precários para um melhor entendimento sobre a composição e estrutura dos sítios cerimoniais desse período. Tudo isso parece indicar que esses tipos de sítio não eram bem desenvolvidos nessa parte da cronologia Aristé. Em torno do ano 1000 d.C., porém, o quadro parece mudar dramaticamente: termina a ênfase em sítios de aldeias e eles tornam-se praticamente invisíveis no registro arqueológico; de outro lado, acontece uma verdadeira explosão de sítios cerimoniais/funerários. Ao mesmo tempo, cerâmicas policrômicas bastante elaboradas entram em cena. É o estilo EnferPolychrome da sequência Aristé.

Figura 2 – Cerâmica antropomorfa típica do estilo EnferPolychrome

O tamanho pequeno dos sítios de aldeias e sua relativa invisibilidade no registro arqueológico já haviam sido notados por Meggers e Evans em 1957. De fato, as aldeias desse período nunca excedem 10.000 metros quadrados, possuindo estruturas muito simples, como concentrações de buracos de poste, pequenas fogueiras e lixeiras, o que indica uma curta permanência em cada lugar.

Uma das características mais marcantes desse período são as urnas antropomorfas, contendo apliques formando olhos, narizes, orelhas, sobrancelhas e braços. Apesar de ser o fóssil-guia para o Aristé, essa forma não é a única, e nem de longe a mais recorrente. Lado a lado com as peças antropomorfas, há urnas zoomórficas ou, na maioria das vezes, simplesmente lisas, sem decoração. Critérios para usar um tipo ou outro de urna deviam ser estabelecidos, e podiam estar ligados ao papel social das pessoas dentro do grupo. Nesse período, as cerâmicas, na completude de suas formas e grafismos, tornavam os mortos presentes mantendo suas diferenças.

Além das formas, os lugares onde essas urnas são encontradas varia. Os lugares mais impressionantes com ocorrência da cerâmica Aristé são, certamente, os sítios cerimoniais/funerários, que podem ser tanto monumentos quanto naturais. No primeiro caso, encontram-se sítios megalíticos com poços funerários. A maior parte dos sítios megalíticos é formada pelo arranjo circular de grupos de blocos de granito em posições horizontal, vertical ou inclinada, dispostos no topo de colinas. Os tamanhos e as composições são variáveis. Algumas estruturas são pequenas, com menos de 10 metros de diâmetro, formadas por blocos medindo menos de um metro. Outras podem medir mais de 30 metros, sendo compostas por blocos de até 4 metros de altura.

Figura 3 – Sítio megalítico do período EnferPolychrome

Uma análise espacial foi realizada com o objetivo de entender as diferenças nos tamanhos em uma área-piloto. Como apresentado no mapa, os sítios megalíticos estão agrupados por bacias d’água e regularmente espaçados. Considerando as diferenças nos tamanhos das estruturas e suas distribuições, percebemos claramente uma distribuição hierárquica de sítios, com a ocorrência de apenas três grandes estruturas (mais de 25 metros) cercadas por outras muito menores (menos de 20 metros).

Figura 4 – Mapa mostrando a disposição e os tamanhos das estruturas megalíticas

Para compreender melhor essas distribuições, uma área-piloto junto ao Igarapé Rego Grande foi selecionada para um estudo aprofundado. Em uma área de campos medindo 2×0.6 km, existe um complexo cerimonial envolvendo cinco estruturas megalíticas com diferentes tamanhos. Nenhum assentamento expressivo foi encontrado no entorno.

Figura 5 – Distribuição espacial das estruturas no entorno do Igarapé Rego Grande

Quatro dessas estruturas foram objeto de investigações arqueológicas. Essas investigações mostraram que as diferenças em tamanho das estruturas refletem diferenças nas deposições de objetos e, portanto, dos mortos. As menores estruturas megalíticas possuíam deposições mais simples em poços funerários, como urnas lisas e, em alguns casos, o sepultamento direto de ossos humanos em uma câmara lateral. A maior estrutura, no entanto, era formada por um intenso palimpsesto de diferentes tipos de deposições. As performances envolvidas nessas deposições não se limitaram à colocação das peças dentro dos poços, havendo casos de reabertura e manipulação de seu conteúdo.

Figura 6 – Poço funerário no interior do sítio AP-CA-18, mostrando a intensa deposição de vasilhas/urnas

Além disso, no entorno dos poços e de suas adjacências, outras peças são manipuladas e depositadas, muitas vezes com quebras intencionais dos potes e massiva deposição de fragmentos cerâmicos sobre as tumbas. As cerâmicas agem na construção desses lugares, não apenas por se tornarem parte deles ao serem ali depositadas, mas também por suas capacidades de afetar as pessoas, de evocar mortos, de criar relações.

No mesmo período, outro tipo de sítio cerimonial/funerário com ocorrência de cerâmica Aristé são cavernas ou abrigos rochosos, formados na crosta laterítica ou em afloramentos graníticos. Nesses casos, a cerâmica é encontrada distribuída na superfície das áreas abrigadas (Meggers & Evans, 1957). Da mesma forma que os poços funerários, essas grutas mostram diferentes temporalidades no seu uso: enquanto umas estão intactas e sugerem um único evento de deposição, outras são formadas por uma grande deposição de fragmentos de urnas e poucas peças inteiras, sugerindo reutilização, com a destruição intencional das urnas antigas e a deposição de novas urnas no abrigo.

Como no caso das estruturas megalíticas, também esses lugares naturais atestam uma prolongada relação com os grupos indígenas que os utilizavam, indicando que as práticas de visitas e revisitas perduraram por um longo período e por uma extensa área. Dada a semelhança entre a composição dos objetos presentes, seus conteúdos e sua forma de manipulação, as cavernas são verdadeiros “megalitos naturais”. Não são monumentos, no sentido estrito do termo, mas sim lugares na paisagem monumentalizados pela prática. Apesar das claras diferenças estruturais entre os dois tipos de sítios (um presente na natureza, outro construído), o que observamos é a repetição de performances, resultando em registros arqueológicos bastante similares, o que reforça uma complementaridade entre esferas que – dentro do pensamento moderno ocidental – são consideradas opostas: natureza e cultura.

Figura 7 – Abrigo rochoso com cerâmica Aristé

A variedade de lugares onde os mortos podiam ser depositados também parece indicar variedade nos papéis das pessoas no grupo, e um mesmo tipo de agência dos lugares sobre as pessoas. Cada espaço funerário é ativado pelas pessoas e pelas cerâmicas lá colocadas, mas também age sobre elas, não apenas por meio de restrições físicas, mas também na percepção do lugar e em sua própria constituição. Como conjuntos de objetos especiais, depositados em contextos não domésticos, como as estruturas megalíticas e cavernas, as urnas funerárias e seus acompanhamentos ativam relações com espaços também especiais. Como mencionado acima, os contextos de deposição dessas peças também são variados.

Essa associação entre coisas e lugares parece constituir parte importante dos contextos funerários nessa região, e pode ser entendida com base na ideia de capacidade de agência tanto dos lugares na paisagem quanto dos objetos lá depositados e posteriormente visitados e manipulados. Ao considerar que objetos e lugares podem agir sobre as pessoas, a diversidade de lugares funerários nessa região e a intricada relação entre suas matérias podem ser entendidas como variações nas maneiras de afetar vivos e mortos. Os lugares, e as cerâmicas da mesma forma, deixam de ser apenas contêineres. Eles criam relações, definem vistas, restringem os corpos.

São os grupos que manipulam e são manipulados por esses lugares e objetos que entram em contato com os europeus a partir do século XVI. Essas sociedades viviam em uma área frequentemente visitada pelos europeus, mas menos perturbada, ao menos no início, pela conquista europeia. A foz do Amazonas, no entanto, rapidamente transformou-se em um campo de batalha entre portugueses e outros europeus. Com isso, hostilidades tradicionais entre grupos indígenas foram exacerbadas e doenças epidêmicas levaram a um impressionante declínio da demografia indígena nessa região. O território Aristé, no entanto, graças a uma localização relativamente distante dessa área de conflito, permitiu a sobrevivência dessa cultura por mais tempo.

Porém, novos elementos entram em uso na cultura material: os lugares cerimoniais/funerários agora apresentam, com as tradicionais urnas funerárias, itens de troca com os europeus, como contas de vidro, louças e instrumentos de ferro. Pela cronologia desses itens, esses locais continuaram em uso até o século XVIII. Estudos históricos e etnográficos sugerem que durante os primeiros momentos da conquista europeia pode ter existido, nessa região, uma grande confederação de clãs, autônoma e refratária a todo tipo de intrusão. Apesar dessa organização, a escravidão e a violência impostas pelos invasores obrigaram esses povos a se reorganizar. Rearranjados, eles pararam de reproduzir sua cultura da forma antiga. O rico patrimônio cultural que herdamos desse período, como a cerâmica Aristé e os monumentos megalíticos, deixou de ser produzido.

No entanto, alguns dos atuais indígenas habitantes da região do Baixo Rio Oiapoque, como os Palikur, podem ser descendentes desses antigos povos e seguem criando maneiras de pensar e expressar suas culturas. Nesse sentido, o rico registro etno-histórico e a memória desses grupos são um recurso bastante importante para entender a região. A fim de investigar essas questões mais a fundo, está sendo desenvolvido o projeto “Arqueologia pública na terra indígena Uaçá”, com a antropóloga Lesley Fordred Green, o videografista David Green e o arqueólogo Eduardo Góes Neves. O projeto busca envolver a comunidade indígena na pesquisa, investigando sítios arqueológicos que estavam relacionados a eventos importantes da história dos Palikur, buscando o levantamento de histórias orais e discutindo com eles as prioridades da pesquisa e os resultados do projeto (Green, Green &Neves, 2003). Tal colaboração, que ainda está em curso e não será aprofundada aqui, será uma importante oportunidade de combinar dados etnográficos, históricos e arqueológicos para uma melhor compreensão da ocupação humana na região, além de levantar amplos temas, como o significado sociocultural da atividade arqueológica.

Conclusão
A área sob estudo é habitada desde, pelo menos, 7000 anos AP. Desde o início da era cristã, uma cultura arqueológica conhecida como Aristé emerge como dominante na costa norte do Amapá. O período inicial dessa ocupação humana ainda não é bem compreendido, mas uma cerâmica mais simples (estilisticamente falando) e a presença de assentamentos grandes e fortificados são evidentes. Também se deve ressaltar uma baixa ênfase nos sítios cerimoniais. Em torno do século X, algo “revolucionário” parece ter acontecido, com a fragmentação e dispersão dos assentamentos na paisagem, aliada ao surgimento de elaboradas cerâmicas policrômicas depositadas e manipuladas nos diversos sítios cerimoniais/funerários que acompanham seu surgimento. Esses lugares, sejam monumentos megalíticos, sejam cavernas naturais monumentalizadas pela prática, participam ativamente, com a cerâmica lá depositada, de uma teia de relações construída pela ação dos grupos indígenas que os construíram e manipularam.

Procuramos aqui mostrar como lugares e objetos presentes na ampla paisagem arqueológica do litoral norte do Amapá e de porções da Guiana Francesa, apesar de constituídos talvez há mais de um milênio, podem ser entendidos por meio de uma abordagem relacional. Esse exercício de buscar entendê-los a partir desse enfoque, em conjunto com discussões recentes na arqueologia sobre a agência dos objetos, aponta para o potencial interpretativo da arqueologia.

Ainda que a fluidez entre as formas seja um conceito teórico (portanto, abstrato), é na prática das ações diárias que as pessoas lidam com ele, como demonstram algumas etnografias (Van Velthem, 2003;Lagrou, 2007). As pessoas que, como as coisas, precisam ser moldadas, o são por meio do embelezamento do corpo, do consumo de alimentos e bebidas determinadas, da realização de atividades específicas, da restrição de espaços onde circulam. Pessoas e coisas constroem-se. Nessa interação entre coisas e pessoas, reside um grande potencial para a arqueologia e a antropologia amazônicas se aproximarem.

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AUTORES
João Darcy de Moura Saldanha
IEPA. João Darcy de Moura Saldanha possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002) e mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005). Atualmente é pesquisador do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá e doutorando no Programa de Pós Graduação em Arqueologia do MAE-USP. Tem experiência na área de Arqueologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Teoria e Método em arqueologia, Pré-história da Amazônia e Cerâmica Arqueológica. E-mail: jodanha@gmail.com

Mariana Petry Cabral
IEPA. Mariana Petry Cabral possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998), graduação em História – Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002), mestrado em História (com temática na Arqueologia) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005) e Doutorado em Antropologia – Área de Concentração em Arqueologia pela Universidade Federal do Pará (2014). Atualmente tem função gratificada do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá, como Gerente Geral do Projeto Pesquisa Arqueológica, foi Coordenadora do Curso de Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia (2010-2012), na Universidade do Estado do Amapá (UEAP). Tem experiência na área de Arqueologia, atuando principalmente nos seguintes temas: arqueologia na foz do Amazonas e discussões sobre teoria e metodologia em arqueologia E-mail: nanacabral75@gmail.com

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